quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Carta ao passado

Se queres saber, ainda me lembro de ti. Tamanha é a hipocrisia das pessoas que dizem ter se esquecido. E qual é o problema com a lembrança? Lembrança remete a passado, e passado é o que nós nos tornamos. Houve coisas boas, houve coisas ruins e houve infortúnios do acaso. Aconteceu que as coisas ruins e os infortúnios prevaleceram. Aconteceu que a nossa sorte não foi assim tão generosa.

Queres saber sobre mágoa, rancor e desilusão. Entendo tua curiosidade. Saibas que guardei-os por muito, muito tempo. Eram peças raras para mim em minha coleção de sentimentos. Eram únicos! Lustrava-os todos os dias ao acordar. Por vezes passava o dia inteiro só contemplando-os e dormia pensando em como estariam pela manhã. Mas o tempo foi passando e por fim enjoei. Vi que não valiam tanto assim e que eram um peso extra, um empecilho à minha vontade de voar. E voar é tão bom! Ao contrário do que se imagina, é preciso ser bem grande para voar. Eu cresci. É certo que estou dando ainda meus primeiros rasantes. Ainda perco um pouco o controle nas turbulências... Mas ficarei maior! Com certeza ficarei maior e um dia conseguirei pairar; pairar por anos! Por toda eternidade! Espero muito que estejas também conseguindo voar.

Eu mudei bastante. Imagino que tu tenhas mudado também. Se formos parar para pensar, nós não nos conhecemos mais. Somos dois estranhos conectados pelo passado. Duas almas ligadas, depois de tanto tempo, nem se sabe o porquê. Exilados de uma mesma pátria para lugares muito distantes e completamente distintos. Por isso eu não vejo sentido em negar que me lembro de ti. E é por isso que desejo, na mais pura das verdades, um dia ainda te encontrar. E espero que seja bem alto, leve, pairando também pelos ares.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Rio

"Já que és Oceano, serei Rio.
Percorrerei meus cursos, mudarei meus rumos.
E serei perene,
Calmo ou revolto, ambundante ou por um fio
Sujo ou cristalino...
Assim serei.
Me perderei, me encontrarei
Me despencarei e me erguirei
E mesmo assim continuarei...
Desviarei de obstáculo, e quando não conseguir
Defrontarei, sem medo
Vencerei, e seguirei.
E ao chegar perto
Me transformarei em rio de amor,
De ternura e aconchego
De afago e alento...
E ao encontrarmos, e sorrirmos,
Sentirei paz.
E viverei.
E morrerei.
Envolto de Oceano."

Lílian de Castro Moreira

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Oceano

Oceano serei sempre para ti. Oceano de água doce; pura e límpida! Oceano de amor e bondade. Oceano de paz e calmaria. Oceano de carinho e compreensão. Oceano de zelo. Oceano de nada, se só quiseres estar. Oceano de lágrimas, se de mim te afastares. Oceano de ódio contra os que vão contra ti. Oceano de horror, se desse mundo partires. Oceano de humor para te divertir. Oceano de risos quando quiseres divertir-me. Oceano de céu quando estrelas procurarem os teus olhos. Oceano de chuva em tuas épocas de seca. Oceano de sol em teus dias nublados.

Oceano serei, sempre serei para ti! Para que assim toda e qualquer sede tua eu consiga sempre aplacar.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Paixões

Apaixono-me sim. E com grande voracidade. Às vezes penso que não sei me apaixonar, mas, pensando bem, quem foi que ditou as regras da paixão? Apaixono-me por cheiros, por gostos e por cores. Apaixono-me ainda mais pelos sons. Apaixono-me pelas letras e por únicas e sublimes concatenações que gênios delas fazem.

Apaixono-me por pessoas também. Apaixono-me por gestos e palavras (principalmente pelas entonações com as quais elas são proferidas). Apaixono-me por ti, por ela, por ele. Apaixono-me também por nós, porque, tratando-se de pessoas, o todo é sempre maior que a soma das partes.

Mas o problema da paixão é a confusão que ela traz. Paixão que eu sinto, eu sinto igual. Se apaixono-me por ti, posso ter me apaixonado pela tua cor, pelo teu cheiro ou pelo teu timbre de voz. Posso ter me apaixonado pelo teu jeito meigo de ser ou (coisa mais engraçada) pela tua severidade. Posso ter me apaixonado pela tua entonação ou pelas coisas que tu escreves. Até mesmo por o que lês ou escutas. Por o que vês e sentes prazer.

Apaixono-me. E apaixono-me de verdade, mesmo sem saber o porquê ou sem ter um para quê. Desisti de procurar ou tentar explicar o motivo. Porque se existe a paixão ela é causa e ao mesmo tempo consequência. Ela é condenado e carrasco. Ela é mártir e opressor. Ela existe. E só.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Gente de vez

Gosto de gente como eu gosto de frutas: gosto de gente de vez. Tem gente verde demais e tem gente madura demais. Não sou muito chegado a essas gentes, não... Gente verde demais é muito dura. Dá trabalho demais de tirar do pé e só fala coisas adstringentes. Gente verde demais é pequena e tem pouco suco para oferecer; gente verde demais suga muito dos outros para crescer e custa muito para adoçar. Gente verde demais não tem a capacidade de gerar nada para a vida e menos ainda de ajudar a sustentar as vidas de outras gentes.

Gente madura demais também não acho assim grande coisa. Quando não é doce demais que chega a irritar, está podre ou com bicho. É a falta de cuidado com o tempo é que implanta bichos e podridão nas gentes maduras demais. E quando isso acontece, não tem jeito; fica muito difícil de aproveitar. Gente madura demais é muito sensível e amassa por qualquer coisinha. Isso porque tem consigo toda a convicção que traz a passagem do tempo. E gente de convicção sempre cai do pé com maior facilidade. E quando isso acontece elas podem até rachar.

Por isso é que eu gosto mesmo é das gentes de vez! Gente de vez sempre está no ponto. É doce o necessário, mas sempre deixa aquele gostinho azedo do desafio da conquista. Não é dura, nem macia demais. Dá um certo trabalhinho de se degustar, mas o sabor é sem igual! Gente de vez já conhece bem das coisas da vida, mas ainda se dispõe a trocar experiências sem a prepotência temporal das maduras demais. Gente de vez tem o sumo cheiroso e é mais sedutora que as outras. Gente de vez balança ao vento sem o medo de cair. Não porque ache que nunca cairá, mas porque sabe que se cair sempre poderá ser aproveitada. Gente de vez tem vontade, garra e alegria! É claro que sempre encontramos outras gentes fenomenais, como as gentes uvas-passas e as gentes maçãs-verdes. Mas cá para nós, eu acho as goiabas de vez bem mais sensacionais!

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Ah, esse moleque...

A vida às vezes nos aborda com uma série de fatos estranhamente correlacionados os quais não conseguimos entender. Uma série de coincidências improváveis que fazem até o mais inveterado dos céticos questionar-se, ao menos que seja por um ínfimo intervalo de tempo, a respeito de algum comando celestial para as coisas terrenas. Se são boas, nos sentimos protegidos; abençoados pela suposta presença de um anjo da guarda das probabilidades, que nesse momento está ali, viciando em prol da sua felicidade os dados da sua vida. Se são ruins... uma revolta nos assalta e nos portamos feito loucos; feito o Mel Gibson em sua teoria da conspiração. Tudo e todos contra nós. Pensamos o mundo um imenso cassino onde ganhar é impossível. Onde a roleta nunca está do nosso lado.

Mas o que vejo mais interessante são as coincidências inertes. Coincidências que não nos afetam diretamente; nem para bem, nem para mal. Disse diretamente porque essas coincidências acabam por nos atingir. Acabam por fazer sentir-nos cobaias, experimentos não muito bem planejados. Brinquedos. E o fato de atuarmos como brinquedos, faz a vida ser o moleque curioso. Aquele moleque que cutuca, que desmonta, que vira e revira. O moleque que queima a formiga com lente e joga sal na pele do sapo. Que coleciona bolinha de gude, que brinca de bem-me-quer e customiza o próprio pião. E dentre todas essas brincadeiras aquela que o moleque mais gosta de brincar é de pipa. Ora deixa o vento nos levar, ora dá guinadas. Às vezes nos levanta bem alto, tão alto que pensamos nunca mais podermos cair. Mas sempre aparece uma linha com cerol que nos ceifa, nos poda do nosso guia e entramos num turbilhão. Caímos bem longe no meio do mato, de onde tudo o que podemos fazer é esperar nosso moleque nos encontrar. E recomeçar, exaustivamente, toda a brincadeira.