quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Arisco

o medo de se causar uma ofensa
traz, até, certa recompensa
mas para uma relação deveras intensa
ar(r)iscar é essencial

Social

as operárias não conhecem a rainha
os soldados não conhecem o general
os vassalos não conhecem o suserano
e nenhum de vocês, crentes, conhecem Deus

assim sendo
sou instrumento
de lealdade
para com a sociedade
justamente por ser só
e também não só
por estar imerso
assim

Encontro

tornou-se acidez o que ontem foi doçura
tornou-se sépia o que era candura
o que era vinho verteu-se em água

que lava as ruínas do castelo em pó
que leva os delírios e desfaz o nó
das entranhas distorcidas pelo etéreo

que deixou na boca um sabor acre
do gozo incontido de libido e vinagre
dos sons inerentes ao você-e-eu

e deste vinagre eu me tempero
curtido em lembrança ainda espero
que num milagre e revés do tempo
torne-se futuro a noite que se findou

Partilha

tudo a seu tempo
seu tempo é tudo
meu tempo é seu
meu, a seu tempo
tempo, seu e meu
meu e seu, tudo
meu tudo é seu

Quasi-soneto

por vezes eu queria fazer
para ti um pequeno soneto
mas fazê-lo assim não me meto
que soneto não sei escrever

vou tentando te agradecer
assim mesmo, singela existência
sem vergonha e sem experiência
eu espero deixar-te saber

que admiro-te mais do que muito
numa dimensão estratosférica
mesmo que sejas sempre fortuito

soneto não é, esse poema:
não que venha a faltar conteúdo,
mas só tem nove sílabas métricas

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Adoro seu cheiro de napalm pela manhã

meu coração é prisão que não quer abrir
enquanto você é rebelião que não acaba
você é fogo que sempre se alastra
pela capoeira do que há por vir

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Antagônicos

você é pragmático, eu sentimental
você é Ciência, eu sou Arte
você é Saturno, eu sou Marte
eu, et cetera, você é o tal

você é Rousseau, eu Stanislaw
você é ciente, eu, maluco
é digital, eu sou cuco
você é de ferro, eu, de pau

eu sou planta, você, animal
você, predador, eu sou presa
você é ataque, eu, defesa
eu sou mocinho, você é do mal

eu sou da roça, você, capital
eu sou de leite, você é de corte
eu, curandeiro, você é a Morte
você é boldo, eu, sonrisal

você se levanta, eu passo mal
você é Marlboro, eu, de palha
você é de linho, eu, de malha
você é smoking, eu, avental

eu sou Brasil, você, Portugal
você é gigante, eu, pigmeu
eu, Geraldinho, você, Alceu
você, couraçado, eu sou a nau

você é dos mares, eu, fluvial
eu sou o arco, você, a seta
antagonismo que me completa:
eu sou Juçara, você é Marçal

domingo, 17 de julho de 2016

(pseudo) Amores

As suas cabeças ainda repousam sobre o travesseiro da minha imaginação. Ainda escuto o pulsar dos seus corações com a minha libido. Ainda observo seus corpos nus no espelho da minha alma. Ainda tomamos, todos, as taças vinho ao som de um jazz antigo dos anos 50 enquanto fumamos, todos, nossos cigarros.
Amores, pseudo-amores, frutos de minha criatividade infatil e de minha paixão ancestral, e nascidos na solidão pura e irremediável que escolhi para mim. Vocês vivem em mim, são partes de mim; participaram no que hoje sou. E, me amando como eu me amo, um amor intrínsico, inato e absurdamente real, tomo a liberdade de abandonar o prefixo e chamá-los por o que de fato são: meus amores.

sábado, 16 de julho de 2016

Utopias

Utópicos ou não, todo ser humano necessita de uma utopia para viver. Um motivo; um desafio que o faça prosseguir. Algo que julga impossível de atingir, mas que o motiva a tentar quebrar o impossível.
Para que possa parecer heroi.
Para que possa parecer sobre-humano.
O possível é chato. O possível é possível.
Queremos ultrapassar os limites.
Queremos descobrir.
Queremos desbravar.
Queremos - todos - ser os deuses do nosso novo mundo.
Queremos - todos - criar o nosso mundo.

Esse é o motivo da vida: a busca pelo (quiçá) inalcançável.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Segredo

quero contar-te um segredo vem cá, não tenhas medo daqueles de banho gelado no inverno vou te ensinar, serei paterno para que andes também no inferno sem jamais te titubear eu quero ver-te bailar ao ar em dia claro e sem o nevar de uma vida reprimida e só eu quero que espalhes dos móveis o pó que tires de vez da garganta o nó e olhes somente para ti e teu futuro saibas que não é assim tão duro é meio como caminhar no escuro: de tanto breu a vista acostuma é como luz baixa em meio à bruma não há felicidade que não se assuma e que, assumida, não te mostres o trilhar!

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Substantivos

adorar é dor
venerar: veneno
amar? é mar!

quarta-feira, 9 de março de 2016

A um certo Gustavo

Amigo, meu amigo... prepotência chamá-lo amigo: muitos anos que não nos vemos. O fato é que não nos conhecemos mais. Mas acredito piamente que as essências permanecem. E sempre me agradei muito de sua essência.

Os carros passam, as folhas ressecam, mas as flores renascem. Digo isso não levianamente: passei por outonos eternos (enquanto duraram).

Os outonos passam. E assim como eu - que há anos não o vejo - estou certo de sua vivacidade e beleza, certo estou também de que muita flores ao seu redor sentem - e adoram - sua fragrância reprimida; adormecida.

Tudo passa - desacreditava eu em meio ao meu (último) outono (e o) mais tenebroso.

Isto hoje para mim é certeza. E tenho certeza que para você também o será. Mas... curta seu outono. Curta da maneira mais rasteira e funesta que você puder. Porque a ressequidão das folhas hão de passar, mas ainda temos de reconhecer sua beleza.

Um grande abraço de um projeto de amigo.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Faltas

falta é ler o nome com o coração
ver as fotos com a alma
e sentir no tato a ausência

falta é duvidar da própria existência
sentir o gosto das risadas passadas
e no frio do estômago relembrar as conversas

falta é se sentir vazio
como se a luz de sete mil sóis
iluminassem somente o espaço não preenchido

falta é se achar caído
é ouvir a música do seu caminhar
como se jamais se tivesse ido

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Dúvidas

Por que me chamas
Se o vento em teus cabelos
Não provém do meu peito em chamas?

Por que me acenas
Se as pulseiras em teu pulso
Não roçam em minhas pernas?

Por que me abraças
Se teus braços em forma de arco
Não me acolhem em teu coração?

Por que me ris
Se teus lindos dentes brancos
Não é minha língua que vai desbravar?

Por que me sonhas
Se teus sonhos mais obscenos
Não sou eu a protagonizar?

Por que me tocas
Se a libido que vem de teu ventre
Não é minha pele a receptar?

Por que me ouves
Se os arrepios de sussurros gemidos
Não é minha voz que vai te causar?

Por que não me aceitas
Se à noite quando te deitas
Embalo teus sonhos com meu sonhar?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Metamorfose

O asfalto ralando o coração pelo caminho
Em meio a pedaços e vinho
Exala-se o aroma da felicidade que se finda

Finda está a festa
Atesta o meu entorno:
Contorno de alma vil,
Febril eloquência insipiente

Findo está o verão
Serão dias nublados
Destilados por sobre a mesa:
Acesa há de manter-se a chama

Que trôpega e indolente
Assente que sua loucura
Perdura como um casulo
Chulo sem desabrochar

Revolve em meio ao breu
Ateu que não acredita
"Bendita seja a loucura!"
Procura um grito errante saída

E em venerável instante
Vagante grupo da lenda
Atenta ao casulo quadrado
O alado grupo das fênix

A loucura se faz livre
Exibe suas asas belas
Telas de acidez e fumaça
Escassas em qualquer trela

Então a loucura brilha
Empilha seus bons vinis
Gris não é mais o dia
A loucura agora é feliz

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Chama

tô indo ali
qualquer coisa me ama

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O fio da vida

Acaba sendo engraçado a forma com que as pessoas complicam suas vidas. Encontram-se emboladas num emaranhado aparentemente muito intrincado, mas que, com dois ou três puxões de fio são facilmente desfeitos. O que acontece é que justamente por estarem dentro deste ninho, não conseguem perceber a situação como um todo, e tampouco se esforçam para tal. Três puxões de fio e a vida retoma a linearidade gostosa e despreocupada da infância, que jamais deveria ter sido perdida.

Acaba sendo desesperadamente tentador querermos meter as mãos nos biofios alheios e desemaranharmo-lhes os problemas, tentação esta proveniente de um egoísmo mais que infantil, um egoísmo quase instintivo. Queremos nos tornar herois de nosso mundo, sem perceber que herois não têm lugar nem serventia em um mundo são. Queremos nos mostrar os alfas, conquanto alfas não possam existir numa real comunidade. Assim, em vez de criarmos um ambiente ao nosso redor em que - justamente por uma respeitosa omissão - ajudamos as pessoas a se tornarem seus próprios herois (destituindo, assim, qualquer um de tamanha importância), os alimentamos os demônios e soltamos os leões, para que os exorcisemos e para que coloquemos mais uma vez as feras em suas jaulas.

Dessa forma acreditamos em nossa própria importância ante nossos semelhantes. Mas que não nos enganemos: estamos sempre reinventando a roda ao resolver problemas que ajudamos a criar. Podemos enganar aos menos atentos; àqueles que não enxergam de fora do emaranhado. Mas a insatisfação sempre morará em nossos corações enquanto exista sempre alguém que nunca poderemos enganar completamente: a nós mesmos.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Invulnerável

Saudades de que me virem a cabeça
Que me façam mudar de ideia
Que tirem a poeira e que pereça
O antigo que levo na boleia

Saudades de que me abra a ferida
Que em vez de rosa, seja espinho
Que me rasgue o peito e deixe caída
A alma que levo em meu caminho

Saudades de que me incomodem meu sono
E que me aborreçam o ego
Que me descubram como funciono
E que arranquem do quilhão o prego

Saudades de que me batam pra valer
De alguém que me desate o linho
Porque aqueles que me tentam bater
Só conseguem me fazer carinho!

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Semente de amor

Tenho um amor encubado, um amor-semente há mais de década esperando para brotar. Mas... Lá sei eu cuidar de amor?! Amor dá bicho, pega fungo e pode fácil, fácil morrer de doença. Morre de frio, de excesso ou de falta d'água. Quando novo é uma gracinha! Mas é mais difícil de cuidar. Quando vai envelhecendo fica mais independente, mas nisso ora ou outra vai-se embora também. Eu já perdi um tanto e já deixei tantos outros morrerem. Acho que vou deixar esse em semente, mesmo. Dar fruto não vai, mas aí faço colar e penduro do lado do coração.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Rastejando

O veneno da cobra
Do escritor, a obra
O mote:
Do poeta, o bote!

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Fantasma

A um fantasma devotei minh'alma,
Meus anos e minhas lágrimas.
A um fantasma devotei meus risos,
Meus sóis e madrugadas.

Um fantasma roubou-me a paz.
Roubou-me os olhos e o meu sono.
Um fantasma que nada traz
Além de choro e abandono.

Se aparece, em polstergeist,
Acendo logo os castiçais,
Só que antes do jantar ele some.

Se aparece, assombração!
Bate-me as portas do coração
E deixando-as cerradas ele some.

A um fantasma faço rituais,
Acendo velas, procuro em vitrais
O espectro de sua presença.

Este fantasma, que bem me faz?
Além da beleza de sua forma altiva
Que ao surgir, gozam meus olhos em alegria?

A um fantasma devotei minha vida
Aqui escrevendo nesta noite fria
Da possessão há anos sofrida
Por esta aparição, por este guia.

A um fantasma devotei meu mundo
Tendo seu rei colocado em xeque
Segue parado a cada segundo
Girando tal qual as mesas de Allan Kardec.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Destino marcado

eu aqui pensando nas voltas da vida
e como ela me troxe de volta
às trilhas que você fez

não foi o acaso, nem deus
foi você que me trouxe de volta
às trilhas que você fez

de corpo marcado, de dorso suado
andando nas trilhas que você fez
é que agora retorno, de couro, de aço
às trilhas que você fez

de pele queimada, de alma marcada
andando nas trilhas que você fez
é que agora me deixo, ao vento e ao prado
e me lembro das trilhas nas quais
foi você quem me fez

sábado, 29 de agosto de 2015

Ode aos churrascos de sábado

Brindemos!
Ao sol que nasce
Ao amor que verte
Ao dia eterno
Que não se escurece
E ilumina as pétalas do nosso jardim!

Bebamos!
Que a vida é longa
Que a noite é curta
Que a tristeza é ácida
E a alegria grande
Para caberem em coração sóbrio!

Cantemos!
Que há grandes males
Que há grande espanto
Mas a vida dá o tom
E a perfeita harmonia
Só nos resta compor e cantar a melodia!

Dancemos!
Que o corpo é jovem
Que a dama é moça
E o bolero da vida
Que pra lá vai, mas pra cá fica
Enche a alma de libido e paixão!

Amemos!
Que o amor é mato
Que o amor é praga
É fogo que não se apaga
É a vítima, o réu e o fato!

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Alien

Você não pode ser humano
O poder que exerce sobre mim
Um misto de medo e vergonha

O que nos causa o medo
É o que atrai aos nossos nossos lados mais obscuros
E esta atração envergonha

Tenho medo
Tenho medo da sua distância
Tenho medo de não ter por perto tamanha existência

Que me toca e me faz venerar
Que me atinge
Que me tinge em rubor
Que me tira do prumo
E me ausenta

Tenho medo
Tenho medo da sua beleza
Tenho medo do palpitar em meu peito quando se aproxima
E das pernas bambas quando passa

Sinto como se fosse o melhor dos vícios
E o mais forte dos venenos
Que dilaceram
Que corroem
Que matam

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Ex-gay

Borboleteava aqui e acolá. Desde pequeno calçava os sapatos da mãe e imitava com grande categoria a amada figura Dona Florinda. Era pena na cabeça e rebolados "indígenas". Eram as saltitanças pela casa e eram os desenhos de princesas. Lindos, "mas isso lá é coisa de menino fazer?" diziam os familiares.

Sempre foi um amor de criança. Na escola era só boas notas e lia livros muito mais avançados que seus coleguinhas. Gostava de arte em geral, mas sempre tendia ao teatro. "Adoro fazer drama!" era seu hino de adolescente. Mas na verdade não fazia nada: era generoso, carinhoso e muito condescendente. As brincadeirinhas homofóbicas de colégio eram tão frequentes e vinham de tão antes de entender-se por gente que nem ligava: "Ah! É isso mesmo! Não me junto com essa gentalha!", relembrava seu ídolo. Porém se juntava. Fazia amigos sempre e em qualquer lugar. Outros meninos chegavam de outros colégios, estranhavam seu comportamento e entravam nas brincadeiras com outras intenções. Mas rapidamente notavam o  enorme carinho e a admiração oculta que seus colegas tinham por ele. Era espontâneo, dono de si e não duvidava nunca de sua felicidade. E era justamente essa a fonte de sua força, de seu coração e de seu carisma.

Cresceu. Como já dizia há tempos, "tinha alma de artista!" e foi para o Rio estudar Artes Cênicas. A essa época a família toda já aceitara a sexualidade do rapaz, que, mesmo não sendo "o que o pai esperava", era uma pessoa fantástica e que sempre promovia o bem. "Meu filho pode ser o que for, mas é muito mais homem do que a maioria dos que falam dele por aí!", bradava o pai com certo orgulho até.

Já se apresentava em um pequeno grupo de teatro e suas performances eram sempre aplaudidas. Sua carreira estava começando com ares de próspero futuro! Seus professores já viam nele um grande potencial e as propostas de trabalho pipocavam cada vez mais ao aproximar-se de sua formatura.

Tudo estava belo para ele, não tinha do que reclamar - se bem que não era do seu feitio reclamar da vida. Até que um dia voltando de um ensaio à noite encontrou um grupo de rapazes: embriagados, enraivecidos e invejosos de qualquer felicidade alheia. "Ô, bichinha!", disse um. "Lá vai o viado!", outro. "Tá indo dar a bunda, é?", um terceiro. Nosso amigo replicou (nunca foi de seu íntimo ter medo): "Eu não, mas pelo visto vocês é que tão querendo!", disse com um certo glamour que ele só conseguia quando queria irritar. E infelizmente conseguiu. Foi perseguido pelo grupo. Foi espancado num beco. Foi estuprado por cinco. Foi cortado por garrafas quebradas. Foi sangrado até a morte.

O grupo sumiu da mesma forma anônima com a que apareceu. Aparentemente os iguais esvaem-se em meio à multidão de outros iguais. Ninguém sabe deles. Ninguém viu nada.

Lembrei-me deste caso hoje mesmo quando ouvi alguém dizer que não existe ex-gay. Rapidamente pensei comigo: "existe sim. É que diz-se que os anjos não têm sexualidade..."

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Aos covardes

Não ousem vocês, atrofiados do pensamento, se compararem a nós, os libertários de visão! Vocês não têm talento para a vida. Vocês são um sopro indolente e asmático, com o qual alguma divindade medíocre depositou os resquícios ínfimos de sua vitalidade.

Alguns de vocês chegam até a ser grandes perante a sociedade, mas em sua totalidade são ridiculamente minúsculos dentro de si. Ostentam um falso título de sábios do mundo, mas têm medo de descobrir os motivos de suas palpitações insones em meio às madrugadas.

Vocês pregam o excesso de obediência civil. Vocês ignoram e aplaudem quando defecam em suas cabeças embasados a uma legislação corrupta, e são indiferentes às lutas reais para uma mudança efetiva da sociedade. Vocês têm preguiça do coletivo e só têm olhos para seus próprios umbigos. 

Vocês são demasiadamente urbanos. Vocês preferem o concreto e o metal à natureza. É que suas visões são constantemente fechadas pelos antolhos que vocês insistem em carregar, impedindo-os de contemplar as maravilhas ao seu redor.

Vocês são pobres de cultura. Vocês preferem o som do trator a uma bela melodia; uma briga de rua a uma peça de teatro; uma nota de cem a uma magnífica pintura (a não ser que esta retrate suas imagens - vocês são completamente apaixonados por suas próprias feições).

Vocês são mesquinhos. Vocês podem até doar seus dízimos para suas igrejas, mas jamais estenderam a mão para os famintos nas ruas nem amansaram seus ouvidos para escutar sinceramente alguma pobre alma somente necessitada de um pouco de atenção.

Vocês não têm empatia. Vocês procuram explicações e merecimento para todo e qualquer sofrimento alheio e procuram transformar a felicidade de outrem em também sofrimento.

Vocês não assumem sua sexualidade. Vocês se lambuzam em sessenta-e-noves libertinos, mas é o papai-e-mamãe que consideram benemérito de casamento.

Vocês são dogmáticos. Os dogmas não necessitam de raciocínio e economizam aos seus modestos cérebros a atitude de pensar.

Vocês não são o todo, quiçá a metade. Vocês estão longe de encontrar a plenitude em si próprios e necessitam dos outros para descarregar seus traumas desconhecidos e suas desilusões fúteis.

Vocês são invejosos.
Vocês são incompletos.
Vocês são dignos de pena.

Vocês são infelizes.

domingo, 7 de junho de 2015

Autoditadura

Se há luz ou treva
Quem dita sou eu
Se há paz ou guerra
Quem dita sou eu

Se há loucura ou sanidade
Quem dita sou eu
E o temor da meia idade
Quem dita sou eu

Quem dita sou eu
Os trilhos de minha felicidade
E se os vagões seguem em breu
É de minha mente a claridade

Quem dita sou eu
Os caminhos de minha consciência
O ornato do camafeu
Sou eu que o dou existência

Quem dita sou eu
Em toda a minha clarividência
Que vinda do Amor ou da Ciência
Jamais há de me permitir ao que não é meu




terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Porta aberta

Bom, agora é hora, eu acho
De abrir meu portão.
Abrir o meu lar para visitação
Deixar tirar foto, cantar e dançar no salão.

Eu baixei minhas portas no dia
Que ouvi sobre mim umas troças
De diabos que espreitavam já pelo saguão.

Com cara fechada e machado na mão
Corri como um louco pela escuridão
A dar machadadas a esmo, em vão.

Foi quando notei que assim não funciona
Larguei o machado, peguei uma lona
E pus-me a juntar umas tralhas em mim

Limpei cada canto, cada encanto quebrado
À noite desnudo, à luz fantasiado
Pra não espantar visitantes afins.

E então com a faxina se foram os diabos
Sem cheiro de mofo e de rabos queimados
Pela luz que adentrou a janela, enfim.

E então que agora esta casa eu reabro
Para visita ou morada de fato
E como um vaso assim preparado
Aceito semente, muda ou enxerto
E hei de nutrir com esmero e acerto
Tomando de minha limpeza a fonte
Para a orquídea que entrar e vingar no xaxim.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Mitologando

Criei asas e alcei voo sobre o tempo.
Com minhas garras desconstruí probabilidades
E sob baforadas do fogo
De minha imaginação e libido
Forjei um futuro maravilhosamente fantasioso
Completando-nos no antagonismo
Do alvo e do breu
Onde suas garras se prendiam em minhas escamas
Suas presas se afundavam em minha jugular
Onde o rajado de seu pelo fustigava em meus olhos negros
Segregados por terra e por oceanos
Unidos pela lenda e pelo destino
O tigre e o dragão

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Jardim antropológico

Sigo minha jornada agora em meu jardim
Rego minhas flores toda manhã
Jardim de esperança em um futuro promissor
De flores e folhas coloridas e viçosas
Que belas flores eu tenho!
E ainda estão a desabrochar
Converso com elas e elas em troca
Perfumam minha vida
Com aroma da força da juventude
Dou-lhes água e mostram-me folhas fortes
Entumecidas, do mais saudável verde!
Sigo assim: envelhecendo e morrendo
E aos poucos, ao contrário do natural,
Aos poucos me tornando seiva
Para essas existências maravilhosas!

Verbo to be

Não gosto do ser
Gosto do estar
Eu nunca sou,
Estou
Ninguém nunca é,
Está
O estar escancara a efemeridade das coisas
O ser é estático
Imutável
Irreal.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Fogo

Eram duas chamas separadas
Por campânulas de um vítreo destino
Queimavam sozinhas,
envoltas de escuridão.
Mas chegou-se o dia em que
a necessidade do calor fez-se maior
O medo do escuro e seus assombrações
Fez-se maior.
Quebraram-se os vidros,
enrolaram-se os pavios,
regadas de mesmo fluido
e alimentadas de mesmo oxigênio.
Moldavam como sua casa
a mesma escultura de cera.
Brilharam com nunca.
Calor que jamais se sentira.
Arderam entre si
Como jamais nenhuma delas ardera.

E até que se haja pavio, fluido e oxigênio,
Assim hão sempre de ser:
Eternas enquanto durem.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Aquele abraço

Era ali mesmo o centro do universo
Como se o espaço, de modo reverso
Surgisse do encontro dos corações

Foi um instante deveras fecundo
Foi um milênio em poucos segundos
Onde da História se perpassaram eras.

Era epopeia em data marcada
Donde o heroi pôs o pé na estrada
Para encontrar um amor similar

Foi a Eternidade em forma de abraço
Como se o tempo, se curvando em laço
Desse voltas e voltas em torno de nós

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Devaneio

Chega de verso rimado
Se o compasso do peito
Métrica nenhuma segue!

Preferível o inferno de minhas sete vidas
À pureza desse amor
Que minhas profanas e imundas mãos
Se recusam a macular

Explodam-se as redondilhas!
Hei de romper com essa métrica
Onde a confusão do meu coração
Jamais se encaixará.

Danem-se as trovas
Delírios hipócritas
Que condenados do coração
Insistem em cantar!

Antes a ânsia do desejo
Da luxúria descabida, o ensejo
De noites nefastas em casas estranhas
À cegueira desse brilho absurdo
Que, controverso, vem de seus olhos escuros
Ao olhar sorrindo para os meus.

E então que nesta cegueira
Tu me concedes a eira e a beira
E me tirando deste devaneio
Sendo teu braço forte o esteio

Novamente me volto a rimar


terça-feira, 8 de julho de 2014

Repentino

Por que me surgiste em repente?
Por que não me deste um aviso?
Não toco em teu improviso
Que em susto assusta-me a mente

Será esse jogo um abismo?
No qual eu me jogo de frente
E sem me conter eu somente
Me lanço em teu cataclismo

Desastre que me desordena
Senzala que abriga-me o riso
E eu mesmo assim ainda piso
Na chance que surge-me em pena

Aparece-me em data marcada
Aparece-me em dois ou três ciclos
Sem jogo, sem medo ou amigos
Que a nós só um beijo e mais nada

domingo, 8 de junho de 2014

Assalto

Minha casa foi novamente invadida. Roubou-me os discos dançantes, os ingressos para festas, o dinheiro para a cervejinha no bar e a sunga de natação. Deixou-me Ângela Rô Rô, caderninho e caneta, a garrafa de whisky e um maço de cigarros, um coração apertado e a falta de fôlego.

Um covarde assalto! Um assalto a olhos armados: castanhos escuros. Arma comum, mas usada com destreza incisiva! Absolutamente letal, não pude nem arriscar reação. As pernas congelaram e a vida passou-me toda diante dos olhos. Dos meus e dos teus. Dos nossos. Agora o que era meu é teu. Essa é a triste sina do alvo do crime.

Um crime perfeito, por sinal. Completamente sem provas: os olhos não têm digitais, e nem tive tempo de anotar a placa das íris castanhas. Os lábios fartos e carmim são circunstanciais, imagino, bem como a cor de jambo. Coisa de profissional, já disse. Desferiu-me um cumprimento meigo, porém altivo, um leve toque de mãos aos ombros e o golpe final foi um sorriso com covinhas.

Depois de traiçoeiramente me ludibriar com uma conversa adorabilíssima foi embora, mas ainda me ameaçando com os cabelos pretos e o corpo escultural muito bem disfarçado no jeito largado, nas roupas comuns e nos chinelinhos de dedo. Coisa de ninja, levou-me praticamente tudo e só agora me dei conta. Aliás, me dei conta quando me peguei esperando ansiosamente pelo dia que virá levar o resto das coisas que deixou para trás.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Flutuante

Vi hoje uma pluma que flutuava calmamente em sua leve trajetória e calmamente buscava o caminho do chão. Caminho esse por vezes um pouco estremecido por pequenas intempéries eólicas, manifestações irrevogáveis da natureza, mas ainda sim era um caminho manso, de uma leveza e serenidade um tanto quanto incomuns. Nesse pequena observação da pluma que procurava, sem nem um segundo se desesperar, seu descanso perpétuo junto ao solo, percebi que como pluma por agora vou. Sigo um caminho tranquilo, sem muitos desesperos, bem como sem grandes ambições. Um futuro sereno, de muita paz e sem buscar nem passar por grandes extravagâncias ou exageros. Um caminho de pluma, de fato. Prosseguindo nessa ideia me perguntei o que seria meu chão nessa história. Rapidamente concluí: meu chão é a paz. Meu chão é a alegria. Meu chão é a felicidade.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Compaixão

E do choro desesperado
das almas que sofriam
Nasceu uma flor.
Uma flor tão sublime e delicada
que outras pessoas esqueciam
De seus próprios sofrimentos.
E as pessoas que antes sofriam
também esqueciam porque sofriam,
felizes da utilidade de seu
Remoto sofrimento.

Chamemos essa flor "Compaixão".

sábado, 5 de abril de 2014

Bate-bola

Um olhar atravessado. Um semblante carrancudo. Sem motivo. Minto, tem motivo. Motivo sem mote, mas tem. Um gol a mais, um ponto a menos. Camisas distintas. Há algo errado. É tudo triste. Um campeonato. Uma vida?! É tudo errado. Há algo triste. Bola em campo, vida em jogo. Pudor. Cadê? Humanidade? Sei lá. Amores em cores, cores por rancores. Sangues azuis e brancos. Sangues alvinegros. E eu que julgava respirarmos todos pelo vermelho. E o verde? O verde sempre domina. O verde sempre comanda. O verde compra, o verde vende, o verde apita. O verde rege essa peça neo-clássica que nada ilumina. E no surrealismo dessa neo-realidade perecemos. Torcemos, matamos, morremos. E nela, mesmo antes de morrer, de morte já vivemos.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Sobre tonéis e corações

Assim como amadeirado torna-se o gosto da cachaça, com o tempo amadeiradamente amo agora. O tempo, bálsamo etéreo que ameniza todas as dores e sentimentos, ameniza também o amar. Não, assim como com o uísque, ameno jamais significará pior. Tampouco menor. A urgência desmedida, o gosto exalante do álcool  e o gelo necessário para goladas afoitas, escondem notas do sabor, e tornam selvageria instintiva boa parte do gosto sublime do amor.

É fatal. Tal qual as uvas chorosas em lágrimas de sangue pelo pisar impiedoso e sem coração, o sofrimento, a ânsia, o aperto, as pernas bambas, o corar das faces, a falta de palavras e de lugar para as mãos também fazem parte de um processo de fabricação de uma seiva. E na adega escura da desilusão, da solidão, da falta completa de esperanças, essa seiva necessita descansar por um bom tempo. Esse tempo, sim, depende tanto da uva quanto da crueldade dos pés que a maceraram. Anos, década talvez, e poderemos então experimentar o sabor tocante e gracioso do tenro vinho do coração. Que amansa a alma, que acalma a língua e que traz à vida um novo sentido para ela mesma.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Deixa bailar!

Baila no ar
A menina que dança
Que somente se lança
Quando quer se lançar

Sonha com o ar
A menina que canta
Que não se desencanta
Com todo o seu penar

Pensa na luz a menina no breu
Pensa no bem a menina no mal
Vislumbra o trem que avança
Nos ferros das tranças de todo esse mar

Entra nos céus
Quando deita na cama
Quando solta da trama
De todos negros véus

Morre ao léu
Sem nem ter a lembrança
De que quando criança
Pôde livre bailar

César

Vem chegando agora
Leva o mal embora
Chega assim, mansinho
Lava o meu caminho

Vou cuidar de você
Eu serei p'ra você
Seu cais e seu prumo
Que o seu coração
Nunca esqueça a canção
Do meu amor

Vai abrir a porta
Seguir sua história
Mas não vá, sobrinho
Sem o meu carinho

Bárbara

Vem menininha tão cheia de luz
Vem com seu brilho que a todos seduz
Vem com a beleza de um andaluz
Que sua paz como ouro reluz

Se algum dia a tristeza chegar
Nunca se esqueça de me procurar
Se de seus olhos gotinha cair
Não se demore e volte a sorrir

Que você é mais, é puro amor
Seu coraçãozinho não dá chance pro rancor
Que você é sol, só faz brilhar
E nos ilumina só com pequenino olhar

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Criação

Minha mente agora é ovário. Meus neurônios são óvulos que pelo orgasmo do mundo são fecundados. Minha cabeça é útero, que gerando essas ideias embrionárias já se sente mãe mesmo antes de devolver ao pai universo o resultado da libidinosa inspiração que tornou sexo todos os meus sentidos. A felação é meu paladar. Em meu tato Onan se manifesta. O voyeurismo é minha visão. Audição para gemidos e olfato para feromônios. E desta cópula transcendental acabo por parir em forma de arte. Vai agora, minha ideia-criança! Volta ao mundo que me fecundou! Cresce, aprimora-te! Que independente a partir de agora és em tua audácia e delicadeza!

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Esses

Será que seria sério
Sentir somente sintaxe?
Será que seria sagaz
Solapar da semântica os sentimentos?
Será que sorri sem saber
O ser que só segue a saudade?
Ou sem se sondar se sacia
De subsequentes sonetos sem sanidade?
Sabedoria é saber saber.
É saber sem sequer se soltar do
Simples, do
Santo, do
Sano.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Vento virado

Largue de tudo, vire o vento
Se a contento você  não chegar
Pare o mundo, vá sem seu lenço
Se o incenso não mais perfumar

Tenha coragem, parta em viagem
Se a paragem não mais agradar
Mexa na vida, há tempo esquecida
E se levante da mesa do bar

Se der vertigem, não tenha orgulho
Volte à origem, reaprenda a andar
Abra caminhos, limpe o entulho
Pinte os muros que o tempo pichar

Perca seu medo, mesmo sem rumo
Cão vagabundo também vai ladrar
Que da viagem todo o insumo
Felicidade que irá encontrar


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Falta

Um frio constante. Um frio que não vai abrandar. Tua alma fundiu-se à minha e levaste de mim minha própria metade. Levaste de mim meu cerne, meu eu. Eu meu que logo agora acabara de dar os últimos retoques. Mas desses retoques tu foste a cor perfeita da pintura. Tu és o que é genial na obra do grande mestre. É como se tu fosses a tinta e eu a tela. Tu o solista, eu a orquestra. Tu a cereja, eu o bolo. Eu o céu, tu o ocaso. És tudo de mais belo que em mim pode existir. E eu sou o palco onde tua arte se mostra. Sou eu a harmonia do teu improviso. Sou eu o esqueleto de teu belo corpo. O arroz do teu feijão. Do molho, o teu macarrão. Tu és minha pitada. O segredo que ninguém revela. O que me há de melhor. E que de melhor nunca deixará de me ser.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O que importa

Eu não ligo se é presidente ou presidenta. Se o reitor é magnânimo, ou se o juiz é excelente. Se o deputado é ilustríssimo. Também não estou muito preocupado se incomodo-me ou me incomodo. O que incomoda de verdade é o fato de muitas pessoas não preocuparem-se com o que é realmente importante em cada situação. Presidente ou presidenta, fomos nós que colocamos lá. O que importa é que saibamos cada vez melhor escolher quem ocupa o cargo; seja terminando com e ou com a.

Tratamento é tratamento. O que importa é o que está sendo tratado. Se vamos deixar as universidades serem estupradas por uma política irresponsável de expansão em que quantidade é incontáveis vezes mais importante que qualidade ao invés de crescermos e expandirmos de maneira responsável e não sobrecarregando ainda mais o profissional professor que já anda cantando mais que carro-de-boi. É isso o que importa. Não se o reitor é magnânimo, ilustre ou o que seja.

Língua e escrita são formas de comunicação. Não adianta nada nós exacerbamos nosso rebuscado maquinário linguístico sem pensarmos com afinco sobre aquilo o que estamos escrevendo ou difundindo em redes sociais. Tem muita gente aí brigando para que tiremos os tremas do u, mas continuam com vendas no olhos, tampões nos ouvidos e freios no cérebro. Gente que vê preconceito em todas as frases sem pensar que a aceitação das diferenças é o caminho da equidade. Gente que pensa que toda essa cultura do preconceito acabará se jogarmos as diferenças para debaixo do tapete, proibindo verbetes e demonizando discursos claros e inocentes. Gente que não muda de opinião, que pensa que discussão é futebol. Que não enxerga que em uma discussão honesta todos ganham. Gente que não abre a mente.

Preocupemo-nos com o importante, senhores, com o âmago, com o cerne! Quem pensa em detalhes demais esquece do conteúdo. E o que fazemos dessa maneira é comer latas de merda somente porque têm embalagens bonitas...


domingo, 21 de julho de 2013

Olhares

São os olhos as pequenas frestas pelas quais vejo teu coração. Um coração livre, pulsante, alegre, sincero e libidinoso. Cada rápido cruzar de olhares é uma aula, uma lição, uma palestra, um seminário. Nesses centésimos de segundo aprendo muito sobre o teu ser: teus anseios, teus medos, teus princípios, teus amores, teus rancores. Os mais variados questionamentos assaltam-me a mente e o peito. As pernas não respondem. Um misto de frio e vazio chegam à barriga e expandem seus domínios. É muita informação para meu corpo suportar. Há muito o que se processar. Há muito o que dizer. É como se toda a verdade do mundo estivesse ali na minha frente e eu tivesse somente esses centésimos de segundo para absorver. Daí vem todo esse desespero. Daí vem todo esse curto-circuito de sensações que ao mesmo tempo doem e dão prazer. Será que também te sentes assim? Isso é coisa que teu coração não me diz. Isso é coisa importante que eu busco sempre em meio a esse turbilhão de sentidos. Acontece que quando estou quase lá, quando estou quase a ponto de desvendar esse mistério nossos olhares se descruzam. Terminou a aula, acabou o seminário. As pernas respondem e a barriga se enche e se aquece novamente. Está fechado o livro da verdade. O jeito é esperar pela próxima aula. Que não tem hora nem data marcada, mas que sempre anseio por acontecer.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Pequeno conto sobre realidade

Maurício é filho de Pedro, que é gerente de banco numa cidade de médio porte no interior de São Paulo. Pedro formou-se em Direito, mas graças a sua família bem relacionada, viu no ramo bancário uma melhor maneira de conseguir uma vida de maior conforto para ele mesmo e para a sua família. Maísa é esposa de Pedro e é formada em Belas Artes. O que mais gosta de fazer é pintar quadros e tocar piano, o que não faz profissionalmente porque não acredita ser necessário. Há tempos preferiu desligar-se do ramo profissional  para melhor cuidar, educar e inserir Maurício no meio cultural, o que foi meio falho, na verdade, sendo que ele sempre foi aficionado por esportes e achava todas aquelas aulas de música e pintura uma verdadeira frescura.

Maurício toda vida estudou em um colégio de padres nessa mesma cidade de médio porte do interior de São Paulo. A mensalidade era bem alta, mas Pedro e Maísa acharam que valia a pena pagar por esse preço sendo que desde épocas mais antigas já eram oferecidas nesse colégio aulas de computação, inglês, espanhol e francês. Isso sem falar das quadras de tênis, futebol, vôlei e a piscina olímpica dentro das instalações da escola. Todas elas com profissionais disponíveis a atenderem os alunos das 8:00 às 19:00, todos os dias e mesmo em época de férias. Vários cursos eram oferecidos ao longo do ano e várias competições também eram organizadas. Maurício coleciona inúmeras medalhas desde de 1995, conquistando a primeira com 5 anos. Talvez esse seu espírito competitivo tenha o levado para o lado do esporte, para um certo desgosto da mãe.

Pedro e Maísa fazem parte de um clube existente nessa cidade. O título para a aceitação nessa sociedade tem um valor bem alto, mas, como eles mesmos dizem, "Pessoas bem relacionadas socialmente têm a possibilidade maior de receber ajuda em um momento de crise. Isso é muito bom para o futuro do nosso filho."

Maurício agora tem 23 anos e cursa o terceiro período de Engenharia depois de ter feito 6 períodos de Direito para agradar o pai, que nunca o forçou a isso, e ver que na verdade não era aquela carreira que gostaria de seguir. "Cada um tem que seguir a carreira para a qual tem vocação e gosto", diz o pai.

***

Robson nasceu na favela dessa mesma cidade de porte médio do interior de São Paulo no ano de 1998. É filho de Madalena que é costureira desde mais nova. Madalena tem quarta série do primário, sendo que teve que parar de estudar para ajudar os pais numa fazenda pequena, em uma cidade pobre, também do interior de São Paulo. Seus pais eram empregados dessa fazenda e moravam numa casinha que fazia parte da propriedade da mesma. Como a vida rural era muito difícil, Madalena resolveu se mudar para a cidade de médio porte e, com as economias que tinha depois da morte dos pais, comprou uma máquina e instalou-se no morro onde ainda reside, que era muito diferente do que é hoje em dia na época em que mudou-se para lá. 

Madalena conheceu João, um servente de pedreiro que morava próximo ao seu casebre nesse mesmo morro. "Apaixonei-me por ele porque mesmo com a vida difícil que levava ele sempre mantinha-se um homem honesto", diz. Quando Robson tinha 9 anos de idade, ele estudava em uma escola pública nessa mesma cidade de médio porte do interior de São Paulo e Madalena conta até hoje que ele adorava estudar. Nesse mesmo ano João fora morto em um tiroteio entre gangues que há uns três anos haviam começado a dominar o morro. Diante de tais dificuldades, Robson teve que parar de estudar e começou a trabalhar como ajudante em um armazém na entrada no morro como forma de ajudar as despesas de casa, que contava com mais duas crianças, Reinaldo, na época com 5 anos e Priscila, com 3 anos. Quatro anos depois Madalena adoeceu. Sua consulta pelo SUS demorou cerca de 5 meses para ser realizada, e ela desgastou-se muito continuando a trabalhar, mesmo sem condições para isso. Seu rendimento de trabalho caiu muito nessa situação, o que fez com que Robson se endividasse consideravelmente com o dono do armazém para dar conta das despesas de casa. 

Quando há remédio na farmácia do posto de saúde da favela Madalena sente-se melhor e volta a trabalhar em um ritmo bom, mas é bem corriqueira a escassez desses medicamentos, o que até hoje faz com que a produção de Madalena caia e Robson aumente sua dívida com o dono do armazém. Há cerca de um mês, Seu Adonias, que é o dono do armazém, ameaçou Robson de que se ele não quitasse sua dívida seria mandado embora pois "Do jeito que as coisas estavam indo iria morrer como credor de uma pequena fortuna emprestada a Robson", coisa que não queria.

Robson hoje conta 15 anos de idade.

***

Anteontem uma pequena coincidência aconteceu. Enquanto voltava da casa da namorada, Robson teve o pequeno azar de trombar com Maurício e seus amigos próximo a entrada do morro. Não sabe-se muito bem ao certo o que estavam eles a fazer por lá, mas, sem muitos motivos, começaram a caçoar de Robson. Este, que já estava de cabeça quente pelos problemas domiciliares e pela pequena briga com a namorada  (causada também pela falta de dinheiro), partiu para cima da trupe. Obviamente levou sérias pancadas nessa empreitada, mas em meio a briga, viu a oportunidade de levar a carteira de um de seus agressores sem que este percebesse. Tinha visto algo de até muito bom nisso, pois a carteira contava com R$ 530,00, que era mais da metade de seu salário e que faria com que conseguisse pagar uma parte da dívida a Seu Adonias, aliviando a pressão da demissão.

Logicamente quando Maurício e seus amigos chegaram em casa deram falta da carteira, acionaram a polícia e foram atrás de Robson. Foram todos levados à delegacia e todos contaram suas versões. A surra aplicada por Maurício e seus colegas foi estranhamente ignorada pelo delegado, sendo que na hora do depoimento de Robson, senhor Pedro, doutor das leis por mais que não praticasse o ofício, havia acabado de chegar ao local sob chamado do filho. Maurício e sua trupe foram imediatamente liberados. 

O porém era que o delegado já conhecia Robson. É que uma vez estava acompanhado de seus amigos do morro e todos foram abordados pela polícia. Robson levava uma vida muito dura, mas sempre dentro das leis. Já seus amigos não eram bem assim. Foram pegos com alguns papelotes de cocaína e algumas buchas de maconha que iriam levar até ao Centro para alguns clientes, e todos, incluindo Robson, foram levados pela polícia. Depois de algum tempo forma liberados. "Não sei como o Robson mantém essa vida dura de trabalho pesado e pouco dinheiro. Eu não teria força para isso", conta um de seus amigos.

 Robson até agora aguarda que as autoridades tomem providências cabíveis ao menor infrator, e ainda, por mais preocupado que esteja, agradece a Deus que ainda seja um menor e que não tenha que ficar na cadeia por dois ou três anos. "O que seria da mãe e dos meninos sem mim?", pensa.

Incauto

Um soco no escuro
O vento como alvo
Até hoje não me seguro
Até hoje digiro asfalto

Já sou grande para pensar no tempo
Como grande sanador dos incautos
Como incauto procuro um assento
Onde fique assim sem relatos

Mas como sanar sina que não é doença?
Como tornar certo o que não é errado?
Como matar a fome dos saciados?
Como salvar já amados com acalentos?

É como beijar a boca de já casados
Como subornar os já muito bem pagos
Trazer religiosos astutos para outros magos
Ensinar a proferir decrépitos arautos

Já cansei de lançar a esmo
De pagar bem mais do que o preço
Já cansei desse mais do mesmo
E da lógica? Ah! da lógica!
Quando feliz, dessa eu me esqueço!

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Vontades

Depois de um bom tempo volto aqui a dizer a vocês coisas da vida. Não penso que são coisas completamente erradas, muito menos tenho a pretensão de que sejam corretas. Há a simples vontade de sobre essas coisas discorrer. E discorro somente quando há essa vontade. Textos sem vontade são forçados, vazios. É muito mais produto a ser vendido do que arte a ser apreciada. É muito mais feira do que livro.

Mas daí surge uma questão: de onde vem a vontade? Digo que essa vontade vem de outras vontades. Vontade de um alguém, de um onde ou de um quando. Vemos em largas escalas textos de amor, de nostalgia e de saudade. Todos provenientes dessas vontades. Claro que existem outras: a vontade de justiça e de igualdade. Vontade de paz e até de diversão, também. O que importa é querer.

O contentamento nunca é uma boa fonte de inspiração. É meio triste e ácido dizer isso, mas contentamento e marasmo têm muitas semelhanças. E marasmo é férias do coração. É quando não temos aquela pontadinha no peito e nem aquele frio na barriga. É quando as pernas não tremem. É quando o cérebro assume de vez o controle e, sinceramente, o cérebro é um péssimo artista. O cérebro nunca atinge e nem abala. Cérebro não faz arrepiar. Cérebro convence. Convencer pode até ser interessante para termos práticos, mas não é nada comparado ao invadir. Invadir intimidades mais remotas de um ser. E essa invasão se dá de uma maneira muito bela. Invadir é traduzir em si mesmo o sentimento alheio. Um sentimento quase sempre muito bem escondido. Um sentimento que esse ser faz questão e esforços para nunca revelar. Invadir é isso: é fazer-se de estandarte, gravar em si mesmo o brasão de outra família e hastear-se aos sete ventos, sem vergonha, sem censura. Só assim tocamos o alheio. Só assim fazemos sentir.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Carta ao passado

Se queres saber, ainda me lembro de ti. Tamanha é a hipocrisia das pessoas que dizem ter se esquecido. E qual é o problema com a lembrança? Lembrança remete a passado, e passado é o que nós nos tornamos. Houve coisas boas, houve coisas ruins e houve infortúnios do acaso. Aconteceu que as coisas ruins e os infortúnios prevaleceram. Aconteceu que a nossa sorte não foi assim tão generosa.

Queres saber sobre mágoa, rancor e desilusão. Entendo tua curiosidade. Saibas que guardei-os por muito, muito tempo. Eram peças raras para mim em minha coleção de sentimentos. Eram únicos! Lustrava-os todos os dias ao acordar. Por vezes passava o dia inteiro só contemplando-os e dormia pensando em como estariam pela manhã. Mas o tempo foi passando e por fim enjoei. Vi que não valiam tanto assim e que eram um peso extra, um empecilho à minha vontade de voar. E voar é tão bom! Ao contrário do que se imagina, é preciso ser bem grande para voar. Eu cresci. É certo que estou dando ainda meus primeiros rasantes. Ainda perco um pouco o controle nas turbulências... Mas ficarei maior! Com certeza ficarei maior e um dia conseguirei pairar; pairar por anos! Por toda eternidade! Espero muito que estejas também conseguindo voar.

Eu mudei bastante. Imagino que tu tenhas mudado também. Se formos parar para pensar, nós não nos conhecemos mais. Somos dois estranhos conectados pelo passado. Duas almas ligadas, depois de tanto tempo, nem se sabe o porquê. Exilados de uma mesma pátria para lugares muito distantes e completamente distintos. Por isso eu não vejo sentido em negar que me lembro de ti. E é por isso que desejo, na mais pura das verdades, um dia ainda te encontrar. E espero que seja bem alto, leve, pairando também pelos ares.