quinta-feira, 9 de julho de 2015

Ex-gay

Borboleteava aqui e acolá. Desde pequeno calçava os sapatos da mãe e imitava com grande categoria a amada figura Dona Florinda. Era pena na cabeça e rebolados "indígenas". Eram as saltitanças pela casa e eram os desenhos de princesas. Lindos, "mas isso lá é coisa de menino fazer?" diziam os familiares.

Sempre foi um amor de criança. Na escola era só boas notas e lia livros muito mais avançados que seus coleguinhas. Gostava de arte em geral, mas sempre tendia ao teatro. "Adoro fazer drama!" era seu hino de adolescente. Mas na verdade não fazia nada: era generoso, carinhoso e muito condescendente. As brincadeirinhas homofóbicas de colégio eram tão frequentes e vinham de tão antes de entender-se por gente que nem ligava: "Ah! É isso mesmo! Não me junto com essa gentalha!", relembrava seu ídolo. Porém se juntava. Fazia amigos sempre e em qualquer lugar. Outros meninos chegavam de outros colégios, estranhavam seu comportamento e entravam nas brincadeiras com outras intenções. Mas rapidamente notavam o  enorme carinho e a admiração oculta que seus colegas tinham por ele. Era espontâneo, dono de si e não duvidava nunca de sua felicidade. E era justamente essa a fonte de sua força, de seu coração e de seu carisma.

Cresceu. Como já dizia há tempos, "tinha alma de artista!" e foi para o Rio estudar Artes Cênicas. A essa época a família toda já aceitara a sexualidade do rapaz, que, mesmo não sendo "o que o pai esperava", era uma pessoa fantástica e que sempre promovia o bem. "Meu filho pode ser o que for, mas é muito mais homem do que a maioria dos que falam dele por aí!", bradava o pai com certo orgulho até.

Já se apresentava em um pequeno grupo de teatro e suas performances eram sempre aplaudidas. Sua carreira estava começando com ares de próspero futuro! Seus professores já viam nele um grande potencial e as propostas de trabalho pipocavam cada vez mais ao aproximar-se de sua formatura.

Tudo estava belo para ele, não tinha do que reclamar - se bem que não era do seu feitio reclamar da vida. Até que um dia voltando de um ensaio à noite encontrou um grupo de rapazes: embriagados, enraivecidos e invejosos de qualquer felicidade alheia. "Ô, bichinha!", disse um. "Lá vai o viado!", outro. "Tá indo dar a bunda, é?", um terceiro. Nosso amigo replicou (nunca foi de seu íntimo ter medo): "Eu não, mas pelo visto vocês é que tão querendo!", disse com um certo glamour que ele só conseguia quando queria irritar. E infelizmente conseguiu. Foi perseguido pelo grupo. Foi espancado num beco. Foi estuprado por cinco. Foi cortado por garrafas quebradas. Foi sangrado até a morte.

O grupo sumiu da mesma forma anônima com a que apareceu. Aparentemente os iguais esvaem-se em meio à multidão de outros iguais. Ninguém sabe deles. Ninguém viu nada.

Lembrei-me deste caso hoje mesmo quando ouvi alguém dizer que não existe ex-gay. Rapidamente pensei comigo: "existe sim. É que diz-se que os anjos não têm sexualidade..."