quarta-feira, 6 de julho de 2011

Calabar: o Elogio da Traição

Como um aficcionado por música brasileira, há muito tempo tenho conhecimento e sinto muito apreço pela obra de Chico Buarque de Holanda. Bom, acontece que, por fatores desconhecidos, o contato com o que faria-me reconhecê-lo como genial tardou muito a acontecer. Somente nesse ano de 2011 tive o contato com o magnífico disco de 1973, "Chico Canta" (??? - explicações adiante), que é trilha sonora da peça "Calabar: o Elogio da Traição", de Chico Buarque e Ruy Guerra.

Nesse texto não tentarei dar uma aula sobre Domingos Fernandes Calabar, nem sobre o contexto histórico da sua existência, e nem sobre a ditadura militar, que foi o grande "alvo" da peça lançada. Isso encontra-se em qualquer livro de História do Brasil (por mais tendencioso que possa estar, mas que seja! Todos nós devemos trazer nossos próprios filtros de acordo com nossos próprios conhecimentos e vivências). Somente darei um pequeno embasamento para que vocês possam contemplar a grandiosa genialidade do Chico ao compor algumas das músicas que fazem parte da trilha sonora da peça.

Durante a invasão holandesa no século XVII, Calabar era uma peça estratégica fundamental para o exército português pelo fato de saber muito sobre a região local (Recife e redondezas) e muito sobre táticas do exército português. Quando Calabar decide passar para o lado dos holandeses, a disputa muda de figura e a invasão toma proporções muito maiores com a tomada de várias localidades. De qualquer forma o desfecho da história se dá com a captura e esquartejamento de Calabar, com sua exposição em praça pública, e a expulsão dos invasores.

A passagem de Calabar para o lado holandês é muitas vezes associada com o "patriotismo" de Calabar que supostamente teria a visão de libertação do "povo brasileiro" ante a tomada do território pelos holandeses, visto que o Brasil, pela ótica portuguesa, era declaradamente uma colônia de exploração. Essa é um ponto de vista dúbio da questão, uma vez que a existência de uma identidade de patriotismo com o Brasil é considerada muito improvável para datas tão remotas. Um motivo alternativo para a traição seria a melhoria da condição de Calabar enquanto comerciante (senhor de engenho).

Tendo feito essa "grande" explicação do que teria sido Calabar e sua representação, vamos à melhor parte: as músicas! O que o Chico fez com toda a história foi o entrelaçamento da história de Calabar com ficção embebida em conotações sexuais. A música que mais demonstra essa postura é "Cala a boca, Bárbara" (Bárbara era, de fato, a esposa de Calabar).




Ele sabe dos caminhos
Dessa minha terra
No meu corpo se escondeu
Minhas matas percorreu

Os meus rios
Os meus braços
Ele é meu guerreiro
Nos colchões de terra

Nas bandeiras bons lençóis
Nas trincheiras quantos ais, ai
Cala a boca - olha o fogo!
Cala a boca - olha a relva!

Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara [...]

Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina
Onde guardo o meu prazer
Em que pântanos beber

As vazantes
As correntes
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro

Nas campanhas, nos currais
Nas entranhas, quantos ais, ai
Cala a boca - olha a noite!
Cala a boca - olha o frio!

Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara [...]


Quanto ao nome do disco, "Chico Canta" não se faz um nome muito atraente para tal fim. O fato é que o disco teria o mesmo nome da peça, mas a censura não permitiu o nome "Calabar". Na verdade ainda proibiu a divulgação da proibição. Logo, colocando-se um nome meio sem nexo como esse, a intervenção da censura ficaria meio evidente aos olhos de pessoas um pouco mais atentas. Algumas pessoas dizem ser "aparentemente sem razão" a censura do nome "Calabar", mas na época da ditadura militar alusões a episódios da época monárquica eram tomados com muito cuidado. Agora pensemos numa figura representativa da traição em prol da mudança governamental para a melhoria da sociedade. Eu acho que seu nome atrelado a um disco na época da ditadura é uma razão muito válida para a censura, sim. Dessa forma aparece (agora, não sei se foi por causa da censura ao nome Calabar ou não) no nome dessa música a montagem do nome Calabar em sílabas iniciais das palavras: Cala a boca, Bárbara. Abaixo as capas do disco. Uma que seria a original com "Calabar" pichado de branco, e a outra que foi a que saiu com "Chico Canta" e uma foto do Chico de perfil no fundo.





Outra música muito interessante é a "Tira as mãos de mim" que, de modo fictício, retrata Bárbara, esposa de Calabar, no momento em que teria matado Souto (que foi a figura que traiu Calabar e o entregou aos portugueses numa emboscada), após ter tido um caso com o mesmo.




Ele era mil
Tu és nenhum
Na guerra és vil
Na cama és mocho

Tira as mãos de mim
Põe as mãos em mim
E vê se o fogo dele guardado em mim
Te incendeia um pouco

Éramos nós
Estreitos nós
Enquanto tu
És laço frouxo

Tira as mãos de mim
Põe as mãos em mim
E vê se a febre dele guardada em mim
Te contagia um pouco


Além de outras músicas, uma que encerra a história de modo memorável é "Cobra de Vidro", que retrata o esquartejamento de Calabar com a sua exposição e um aviso "Presta atenção", que seria por parte das tropas ao povo, como o velho aviso do que poderia acontecer a eles se incidissem em tal caso:




Aos quatro cantos o seu corpo
Partido
Banido
Aos quatro ventos os seus quartos
Seus cacos
De vidro
O seu veneno incomodando
A tua honra
O teu verão
Presta atenção

Aos quatro cantos suas tripas
De graça
De sobra
Aos quatro ventos os seus quartos
Deus cacos
De cobra
O seu veneno arruinando
A tua filha
A plantação
Presta atenção

Aos quatro cantos seus ganidos
Seu grito
Medonho
Aos quatro ventos os seus quartos
Seus cacos
De sonho
O seu veneno temperando
A tua veia
O teu feijão
Presta atenção


Um ponto, que pode facilmente ser uma viagem minha, é o fato do animal cobra-de-vidro não ser classificado como cobra, mas sim como um lagarto sem membros. Seria uma forma de sugerir que Calabar demonstrava ser o que não era, ou algo do gênero.

Curiosidades:

1- Em "Fado Tropical" a parte que se pronuncia a palavra "sífilis" no poema é cortada pela censura.
2- Em "Bárbara", quando da constatação irrevogável de uma relação homossexual entre Ana (de Amsterdam) e Bárbara, também ocorre a intervenção da censura.
3- Ana de Amsterdam é gravada completamente instrumental.
4- Ana de Amsterdam é uma personagem completamente fictícia (seu caso homossexual com Bárbara também, por razões lógicas).

Abraços e até a próxima!

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